Atravessa a rua o mais clandestino dos sentimentos,
desliza em passadas comprometidas
com olhos rasgados de quem possui todas as observações,
vem pelo vendaval de silêncio que lhe sopra a calma
e esgueira-se pelas varandas e estendais,
contorna as nódoas de luz pelo chão.
Acende um cigarro,
corrompe as silvas de fumo
e estreita-se até ao próximo beco
cheio de histórias e garrafas secas.
Faltam vinte minutos para as quatro da madrugada
falta meio respirar para a noite ser mais noite
e cobrir a cidade de luzes frouxas,
as estatuas mais verdes bebem dos sonhos
que acabam de sair pela janela,
a poesia sai à rua,
vejo-a disfarçada de poça de água,
escondida nos arbustos a espera do orvalho matinal,
livre sobre o voou e o sono dos corvos
eu sei que ela lá está,
prova-se à distancia a textura granulada das palavras
e respira-se a paciência de todos os livros que foram escritos.
Troco olhares com esse sentimento nefasto, sadio.
Atravesso a rua em jeito néscio,
afasto os meus olhos para o chão,
subo a ladeira,
e apercebo-me de toda uma vida que perdi naquele instante.
Pedro Afonso