quarta-feira, 29 de novembro de 2006

"Ode à Àrvore"

Bailam com a brisa
as folhas morenas do Outono,
os rostos cansados da natureza.
O tempo que chega é passado,
faz escorregar as lágrimas das árvores
lentas, vagarosas, calmas…

os braços descobertos
das senhoras do tempo
albergam o fruto do frio,
a folha cortada, vadia…

os corações de âmbar marcados
por laminas apaixonadas no teu corpo,
a mensagem…
esse grito esculpido
essa tatuagem de amor natural.

O eco dos pássaros por entre teus ramos
o abrigo,
a fonte de vida,
o nascimento, lento, inexpugnável,
a semente…

a criança que te sobe
a serra que te mata
e as palavras que não se podem dizer.

Pedro Afonso

In "O Gesto do Vento"

(refeito)

 

"Vida Bravia"

Tenho poesia presa no peito
pronta a esvoaçar como pássaros coloridos
pintando as folhas nuas da minha alma...
minha tela, meu pensamento imaginado,
mulher de canela sensual
a poesia descreve tuas coxas,
os teus seios, os teus contornos de mulher bravia
tua boca, linda, louca, madura...
endoideces-me com esse olhar de menina atrevida,
fazes rodopiar minha pobre poesia...

Foi naquela noite de lua mãe...
o luar percorreu o teu corpo sem vergonha,
os querubins cantam árias entre os teus cabelos
entre cada curva sinuosa de teu corpo de mulher feita,
perdi horas nessa noite...a olhar para ti...
descobri esses olhos negros, eclipsados,
pérolas negras, enfeitiçadas pela noite e as estrelas...

vi-te como um poeta...
fechei os olhos....e realmente vi-te,
vi todos os sentimentos discretos que rodeiam a tua alma
toda a emoção que brota do teu coração
quase a esta distancia se pode saborear...

Então...como felina selvagem, lenda, mito nunca visto ou provado
desapareces para sempre no mesmo silêncio que te fez nascer...


Pedro Afonso

In "O Gesto do Vento"

(refeito...)
 

domingo, 26 de novembro de 2006

"O observador"

Observo os poemas da natureza
cada falésia, cada brisa de Maio
cada oceano, cada deserto, cada floresta
cada altar selvagem, virgem...
forjado pela mãe de todos nós,

vejo e sinto os meus versos transformarem-se em últimos suspiros
fecho os olhos...e sinto o calor do sol a esvair-se enquanto morre,
contemplo a mulher lua,
que brilho, toda vestida de seda, toda aprumada para a noite
espalha seu sudário branco sobre o mar
com a promessa de rever um novo mundo amanhã,

observo aquele casal,
rodeados por uma multidão, nem reparam,
ele chora
ela não o quer mais...
o mundo para eles não existe
só as lágrimas dele e o pranto dela,

observo o que ninguém vê...
olho para porta do cemitério, junto aos ciprestes,
a mãe leva o filho pela mão
para junto da campa do pai,
vejo a inocência da criança.
a dor no olhar da mãe.

Observo a morte e a vida
gastas, cansadas...
observo a renúncia de um equilíbrio
a vontade perdida da morte gasta
o desejo por encontrar de uma vida.



Pedro Afonso

In "O Gesto do Vento" 

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

"Manifesto-me!"

Queres os meus olhos?
queres decorar o caminho que as lágrimas descrevem no meu rosto?
prova o sentido da vida!
escreve poesia num beco escuro
e sofre,
filho de uma grandessíssima mãe frígida.
sopra tempestades
e pó
e árvores inteiras!
e tem fôlego para gritar mil vezes liberdade,
aquele copo de sangue,
aquele rosto de silêncio
e tu,
poeta,
maldito
cão!
coisa imunda sem nome
és ordinário.
vá, respira-te!
inspira o teu ar cansado, triste, mudo
vai lá montar aqueles cavalos snobes…
monta puta, monta,
tu que nem coragem tens para seres tu próprio
corta os pulsos,
bebe o teu sangue, podre, gasto, seco…
és tão podre…que nem a terra te vai engolir
vai cuspir-te, vomitar-te
e vais ser esquecido pelo tempo e pelas gentes
queres ser poeta?
queres ser eu?
tens mesmo tomates para isso?
queres ser o autismo de um cravo jogado no chão
queres escrever poemas só com uma golfada de ar
queres poder ver os poetas abraçando as flores…
queres beijar a solidão na boca,
queres ser o vento por debaixo das asas de um pássaro…
queres beijar os olhos de uma mulher e lamber-lhe o sexo sem lhe tocar
eu sei o que tu queres…
queres ser poeta?
queres ser maldito?
queres ser eu?
então…Sê!
por favor sê!
toma o meu lugar, leva tudo!
e morre!

Pedro Afonso

In "O Gesto do Vento"

ps: poema dedicado a todos os Dantas deste Portugal

 

"De Pé"

Levanta-te poeta vadio…
vá...
levanta-te!
salpica outra vez as palavras com revolta,
saliva de novo os versos enternecidos.
Pois se quiseres morrer...
que morras de tanto viver!
vá...
levanta-te!
ganha coragem para ser criança,
brinca com o azul do mar
e beija a espuma que o envolve
e anda e corre e luta com ganas de menino poeta,
vá!
levanta-te!
ergue-te homem sem medo!
chora as lágrimas sem vergonha,
canta poemas em desgarrada
e faz amor com o prazer cru.
Vá!
levanta-te!
segue o vento,
deixa teus passos à beira da estrada perdida
e comete loucuras!
e insanidades profanas
levanta-te!
rasga as veias de pé,
deixa escorrer as memórias
e saboreia os últimos momentos em poesia.

Pedro Afonso

In "Artifices das Palavras"
 

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

"O meu funeral"

Hoje tornei-me imortal.
Estou morto,
não me procurem debaixo da terra
não se percam por entre esse jardim branco
não vou estar na mesquinha misericórdia das flores de plástico
nem nas fotos beijadas pelo sol
de um momento em que parecia feliz,

eu estou entre vós,
no meio de uma biblioteca escura, entre os meus irmãos,
estou aqui e alem, por entre sorrisos ou memórias alegres
estou nos olhos dos meus filhos.
O meu sangue está nas páginas dos meus livros
meu desejo, na boca da minha mulher.


Pois que não tenham vergonha ou medo
gritem dentro de vós em poesia e música e artes sonhadas!
a minha voz é guitarra!
o meu coração é poesia!
e a minha alma continua livre!

Imaginem que fui ao café e que volto já…
pois estou tão vivo como em qual quer outro dia.


Pedro Afonso

In "Artifices das Palavras"

 

"Jazz"

O jazz é uma mulher ruiva.
de cabelos ondulados…
sorriso atrevido, quente
sem medo de deitar a língua de fora…

o jazz é summertime…
um café com natas e canela por cima,
é um baixo bem dentro do tom,
as notas circundado as velas em cada mesa

o jazz é improviso
a guitarra indomada
o sax sem juízo
e esse trompete alucinado

Hummmm isso mesmo
o jazz é pai, mãe e amante
Miles, Coltrane, Fitzgerald
acid, new, old…

não importa quando, onde, nem porquê…
just,
Let it be…Jazz


Pedro Afonso

In "O Gesto do Vento"
 

"Mendigo"

A loucura castrada nos olhos de um homem sem tecto,
as trincheiras do tempo no rosto,
são as memórias do medo, da fuga…
a esperança não existe.
Depende-se da força que temos nas pernas
da esperança que temos nos braços,
de um sonho ocasional que vamos provando.
Verga-se o orgulho,
estende-se a mão nua…
enfrenta-se inimigos elementares
enfrentamo-nos,
a solidão vazia, escura,
não há morte
não há vida…
só a falta de razão para existir.
Só se aproveita o desleixo
o cartão, os sacos de plástico, a fome
a moeda preta que irrita…
o homem que vive na margem do sonho
na vergonha.
No nosso espelho.



Pedro Afonso

In "O Gesto do Vento" 

domingo, 19 de novembro de 2006

"Ode ao Queijo"

Com cheiro colorido
em tom amarelado ou branco
firme ou derretido
Eis o queijo,
de forma circularmente perfeita
cheio de rugas de meia cura
entre os véus brancos da tua maternidade,
adoras aconchegar-te
entre a superfície escarpada do pão torrado
junto ao jubilo de uma manha raiada,
abençoas o novo dia com o sabor tão teu
inerte,
junto à faca luminosa da nossa fome
arregalas o teu aroma singular.
Lembro-me de ti
transbordando a vontade
de mergulhar uma colher em teu corpo alentejano
barrar-te,
vagarosamente sobre a tarde de verão
sobre o pão quente.
E a maravilha de te embeber
num vinho maduro entre os meus lábios
provar a tua história tradicionalmente artesanal
e viajar pelos prados verdes
os vales imensos da minha terra.
Tu queijo
símbolo do prazer sábio
da fome com classe
do jeito pobre cheio de grandeza
iguaria elementar de uma boa mesa,
veste-te,
com esse gosto cru
indiferente as coisas externas
e casa-te em minha casa
desvanece na minha boca…



Pedro Afonso 

sábado, 18 de novembro de 2006

"Tabu"

Ai, se eu fosse louco
beberia das pedras da calçada a história da cidade
e deixaria escrito nos muros os segredos da noite,
lembrar-me-ia da intensidade das estrelas
quantos raios tem o sol!
quantas vezes gritei o teu nome em praça publica!

Sou o expoente máximo da insatisfação!
insisto em ser singular!
Casto e decadente
de veias abertas para a vida!
Vou tatuar no vento as palavras de Negreiros
e beber dos segredos de Dali!

Sou o amante das coisas vivas!
respiro pelo pensamento
e ejaculo o cru sobre as telas
Eis a criação!

Ai se eu fosse louco!
o toiro pegar-me-ia pelos cornos
e o insulto teria vergonha de mim
raspa-me o sacrilégio e puxa-lhe fogo!

Faz-me renascer vazio para ser igual,
dá-me as frases feitas e os conceitos predefinidos!
chama-me Dantas!
deixa-me afogar na multidão e no cansaço…


Pedro Afonso
 

"Verso Vivo"

Cansei-me do papel,
quero tatuar os meus poemas no teu corpo.
Quero provar o teu gosto a poesia,
morder o verso despido
desfolhar o teu corpo por entre o segredo
e desenhar cada letra devagar,
juntar ao café da tua pele
ao aroma do teu sorriso,
a firmeza do teu peito
o cansaço das tuas pernas.
Quero beber-te
consumir-te numa tarde,
quando for poeta
e tu meu poema.


Pedro Afonso

 In "O Gesto do Vento"

"Distante"

Serei porventura o gesto calmo depois do sexo?
ou os movimentos circulares dos astros?
vou confundir-me com a luz translúcida,
o tom magenta que me acorda.
Devolvo à vida o veneno
as palavras que deixei perto do cinzeiro…

Serei hoje pobre,
Condimento as minhas refeições com o sal do meu esforço.
Serei mais logo a miséria.
os braços abertos
a navalha entre os lençóis.

Devolve-me o ar imaculado da minha aflição,
traz-me de volta o céu limpo
as estações
o nadar dos peixes
a cadeia de necessidades
os espaços negros
e os mistérios que passarei a vida a desvendar.

Sou a memória
o espectro acumulado de um futuro vazio,
restrinjo-me,
e aprecio cada olhar que me investiga
entre a multidões anónimas, na solidão,
bebo devagar a satisfação de uma gargalhada
e guardo para amanha o sonho que deixei a meio,
vou pelo caminho mais longo
pela rua do cansaço,
só para existir durante mais tempo
o pensamento egoísta de quem sofre sozinho.

Perguntei aos livros para onde vou
murmurei a fogo o meu destino
guardei no silêncio a minha alma em testamento.


Pedro Afonso

"Aquela Tarde..."

Decoro o teu rosto com o meu toque,
repouso nesse olhar faminto
e deixo arrefecer a palavras.
O meu desejo desvenda-te no palco de um sonho meu
de uma voz nossa,
vicias-me,
preciso de sentir o teu sorriso correr-me nas veias
morder a tua língua,
provar
respirar
sentir o lume da tua boca
queima-me o desejo.
A tua presença ao acordar é o meu orvalho matinal,
os teus cabelos uma savana só minha,
vou beijar-te para sempre naquela boca de ventania
na memória mais próxima
numa fotografia viva de dois destinos.
Tenho os olhos discretos de quem gosta
“Gosto de ti”
no sentido inocente e puro da expressão
gosto de ti como as crianças
sem vergonha ou medo
sem dogma
sem razão,
dá-me um abraço
dá-me uma carícia
deixa-te ficar no meu regaço até o sol morrer.
Agora compreendo-te irmão…
afinal tinhas razão,
se não for ridículo não é amor.
Vou tatuar na tua pele a minha vontade,
vou estar contigo naqueles momentos.


Pedro Afonso